sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Henfil, o “guerreiro” insubstituível

Por Marcelo Auler, em seu blog:

Na quarta-feira (04/01) completaram-se 29 anos da perda de um dos mais cruéis e criativos, na versão do colega dele Ziraldo, cartunistas que o país conheceu. Vítima de Aids, contraída pela irresponsabilidade pública através de uma das muitas transfusões de sangue que recebeu por ser hemofílico – assim como seus irmãos, Betinho e Chico Mário – Henfil morreu novo, aos 44 anos. Mas, Henrique de Souza Filho, nos seus 27 anos de carreira fez um considerável “estrago”, deixando sua marca registrada no humorismo brasileiro. Sofreu com a repressão por conta do seu humor marcante:

“Não poupou a ditadura militar, nunca fez concessões ao conservadorismo, jamais deu bola ao moralismo“, lembrou na data de sua morte o jornalista Alceste Pinheiro, em sua página do Face Book, de onde tirei parte do texto que segue abaixo.

Ele fez parte de uma geração de mineiros que, como seu irmão Herbert Souza, o Betinho – cuja popularidade cresceu inicialmente pelo fato de ser o “irmão do Henfil” eternizado na voz de Elis Regina, na música “O Bêbado e a Equilibrista“, de Aldir Blanc e João Bosco – militou politicamente contra o golpe militar de 1964, cada qual a seu modo. Ele, nos traços marcantes de personagens como Graúna, Bode Orelana, Capitão Zeferino, além dos impagáveis Fradinhos, que consta ter sido uma homenagem aos Frades Dominicanos de Minas Gerais, em especial Frei Mateus Rocha, que ajudou na formação desta “tribo mineira” através da Juventude Estudantil Católica (JEC) e Juventude Universitária Católica (JUC). Desta mesma turma fez parte também Carlos Alberto Libânio Christo, o escritor Frei Betto, de quem fomos buscar um depoimento de como reagiria o Henfil na atual situação política do país. Seu depoimento:

Os novos personagens
Frei Betto

E se o Henfil vivesse hoje? Com certeza criaria novos personagens, como o Lavador, para acentuar o foco antipetista da Lava Jato; Temeroso, o Breve, para enfatizar esse governo golpista que impõe um ajuste fiscal que penaliza ainda mais os pobres e protege os privilégios da elite; The Trumpete, para nos ajudar a analisar melhor o governo Trump; e outros tantos que figurariam ao lado dos Fradinhos, da Graúna etc.


Betto, na sua análise sobre aquele que foi seu amigo pessoal desde Minas, ainda acrescenta:

“Henfil faz muita falta nesse momento em que o humor cede lugar ao ódio e ao ressentimento, e a crítica vira ofensa. Em plena ditadura, Henfil não perdeu a verve humorística e soube fazer das “Cartas à Mãe” um verdadeiro manifesto pelas liberdades democráticas. Talvez hoje ele escreveria “Cartas ao Papa”, já que Francisco é a única liderança mundial lúcida, íntegra e corajosa que desponta no horizonte de nossas esperanças”.
Também os irmãos Ziraldo e Zélio Alves Pintos, mineiros e humoristas, que com Henfil trabalharam em O Pasquim, um semanário de humor que deu trabalho à censura e não largava o pé dos governos militares, falaram sobre como ele seria hoje, nessa nossa conjuntura política, que nem mesmo os melhores humoristas juntos conseguiriam criar. Abaixo os três textos de Alceste Pinheiro, Ziraldo e Zélio:

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Para não esquecer
Alceste Pinheiro

Em 4 de janeiro de 1988, a um mês de completar 44 anos, morria um dos grandes artistas da minha geração, que os de hoje conhecem pouco. Refiro-me a Henrique de Souza Filho, que aprendemos a admirar como Henfil desde que, em 1969, começou a colaborar com O Pasquim, um dos grandes empreendimentos da história do jornalismo brasileiro.

Henfil não poupou a ditadura militar, nunca fez concessões ao conservadorismo, jamais deu bola ao moralismo. Ao contrário.

Em seus traços dinâmicos encontrávamos alento e crítica, sempre em tom de ironia. Ríamos muito com Henfil, ligado desde cedo aos movimentos sociais e um dos fundadores do PT, aquele Partido dos Trabalhadores que por tanto tempo acalentou nossos sonhos e esperanças.

Morreu dizimado pela aids, que adquirira em uma transfusão de sangue. Era uma época em que hemofílicos, como ele, tornaram-se vítimas da doença, que também matou seus irmãos, o músico Chico Mário e o sociólogo Betinho, aquele que, em peça magistral da MPB, Aldir Blanc e João Bosco esperavam a volta.


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O guerreiro sem substituto
Ziraldo

Marcelo, já tem 29 anos que o Henfil morreu? PQP. Quando eu o conheci ele tinha 17 anos (Henfil hoje estaria às vésperas de completar 73 anos). Era o Henriquinho da imprensa mineira da época..

Ele foi um guerreiro. O jornalismo de resistência no Brasil perdeu um guerreiro que historicamente não foi substituído até hoje. Aquilo é que era ser guerreiro.

Eu acho que ele continuaria super respeitado como um dos mais importantes críticos da caricatura brasileira. Ele, hoje, estaria deitando e rolando com a sua crueldade criativa nesse nosso atual panorama político.

Estaria, realmente, muito abalado, muito ferido com esta situação, mas ia continuar lutando com a mesma coragem de sempre. Estamos precisando de um humorista deste tipo.

Ele teria o respeito de todo mundo como um artista da maior importância para o Brasil. Mas, o panorama geral do país, em função dele somente, não iria ser alterado. Uma andorinha só não faz verão.

Mas, ele sabia, como eu sei, que a gente tem que cumprir o destino da gente. Lutar como se achasse que mesmo sozinho ganharia a guerra.

Mas, repara que a nossa categoria foi esmagada… Não temos espaço na imprensa para dar vazão ao nosso protesto. Eu vou lhe dizer algo surpreendente. Hoje, ainda, uma charge publicada em um jornal é mais arrasadora do que cinquenta publicadas na internet.

Saiba você que tem um monte de excelentes caricaturistas publicando seus protestos na internet e nem os mais atentos têm conhecimento do trabalho dele. Mas se imprimir uma charge forte em um jornal o resultado é imediato.

O que tem de humor criativo, gozando, por exemplo, a figura do Temer, é uma infinidade de caricaturas.Mas, uma charge do meu tempo abalava muito mais um político daquela época do que tudo o que a internet publica atualmente.

A situação hoje poderia ser diferente, com todo mundo esperando a charge do antigo JB para ver como seria… Hoje não tem ninguém esperando charge nenhuma. Não tem ninguém usando o espaço da imprensa para protestar.

Você vê que não tem nada mais indignado na cultura brasileira, com a importância que se tinha. Mudou tudo.

Acho que a gente não tem como responder como seria o Henfil hoje. É muito difícil saber. Só sei que não podemos é desistir. Ele não desistiria.


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Ele tinha o vício do calcanhar!
Zélio Alves Pinto

O Henfil, hoje, seria muito interessante. Não só o instrumental (computador/rede social) seria interessante para ele, como ele para esse instrumental. Porque, ele, com uma ferramenta desta, com a criatividade dele, PQP.

Ele era um produtor ágil, ele produzia rapidamente. A cabeça dele estava permanentemente disparada. As mãos não conseguiam chegar junto com a cabeça dele. Se você o dotasse dos recursos que a informática dispôs para o artista, o Henfil iria deitar e rolar.

Com este instrumental, a exposição da opinião dele seria multiplicada milhões de vezes e obviamente com grande repercussão.

Ele tinha percepção. Ele não era um grande desenhista, mas ele era um grande chargista, Eu sempre o achei melhor chargista, porque ele tinha o vício do calcanhar. Ele mordia no calcanhar, sistematicamente. Ele sabia onde estava o calcanhar. Então, ele pegava a coisa de jeito.

Inclusive, essa era uma das justificativas pelas quais ele sofreu tanto tipo de repressão. Ele e os irmãos dele. Porque ele tinha essa capacidade de ser ferino.

Ele era ferino. Quando queria, pá!, dava uma porrada.

Ninguém diria que ele era um jovem hemofílico deficitário fisicamente. Porque a porrada que ele dava intelectualmente era de uma tonelada.

Hoje, ele faria a diferença não apenas no trabalho dele, mas no contexto como um todo. Como a cabeça dele era abrangente, não era pontual… Quer dizer, pontual quando era o caso de ser pontual, porque ele era um tipo que desbravava circunstâncias.

Com toda aquela família que ele fez com a Graúna e com os Fradinhos, eram dois segmentos que ele atacava. Uma coisa e outra. O social e o político. Com grande habilidade, através dos personagens que ele fez. E com uma capacidade, com uma capilaridade com a sociedade, notável.

Embora ele fosse um cara sofisticado intelectualmente. Supostamente, era até um contrassenso ele ser popular. Mas era.

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