quarta-feira, 9 de junho de 2010

A crise na Grécia e o cinismo neoliberal



A Grécia, bola da vez da crise capitalista internacional – que não acabou, como já bravateiam os apologistas deste sistema –, está passando por uma autêntica convulsão social. A luta de classes, que muitos também achavam que tinha acabado, está cada vez mais acirrada. Em menos de três meses, já ocorreram cinco greves gerais, com elevados índices de adesão. Os protestos são quase diários, com confrontos violentos entre os trabalhadores e as forças de repressão do estado.

Ninguém consegue projetar qual será o futuro deste país, um dos primos pobres da Europa. Mas há consenso, porém, que a crise será prolongada e que o caos econômico deve contaminar outras nações do continente. Diante deste dilema, os neoliberais de plantão, culpados pelo colapso, não vacilam em apresentar receitas ainda mais amargas para os trabalhadores. Amparados pela mídia, eles difundem que a atual crise decorre dos “gastos públicos” e do “inchaço do estado” – é o que se ouve nos comentários globais de Carlos Sardenberg e de outros adoradores do deus-mercado.

País abdicou da sua soberania

A mentira é descarada, mas ainda engana os ingênuos. A crise da Grécia não é culpa do “estado de bem-estar social”, do Welfare State, mas sim da gula capitalista. Com as suas especificidades, o modelo neoliberal foi implantado neste e noutros países europeus com o desmonte do estado, da nação e do trabalho. O acordo que deu origem ao euro engessou os estados nacionais com as metas fiscais e monetárias que beneficiaram exclusivamente os rentistas. A desregulamentação financeira imposta agora cobra o seu preço, mas o ônus é jogado nas costas dos trabalhadores.

Com o ingresso na Comunidade Econômica Européia (CEE), a Grécia foi obrigada a cumprir as rígidas metas neoliberais e, além disso, renunciou a sua capacidade de emitir a própria moeda. O Banco Central Europeu (BCE), entidade supranacional com total autonomia, é quem determina a política econômica destes países, que abdicaram da sua soberania. As principais vítimas são as nações mais frágeis, reunidas no chamado Piige (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Os países “avançados”, que não abdicaram das suas moedas, são os menos afetados pela crise.

A morte anunciada do euro?

É o caso da Inglaterra, segundo aponta o economista Emiliano Libman, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisimos. “Ao não adotar o euro, ela manteve sua soberania monetária... A diferença entre Inglaterra e Grécia é que, diante da grande instabilidade que as decisões de gastos do setor privado produzem, o seu Estado pode intervir”. A Grécia foi punida por não ter cumprido a meta de 3% do PIB nos gastos públicos; já na Inglaterra, o déficit fiscal chega a 13% do PIB.

Esta grave distorção é que leva muitos analistas a preverem o fim desta moeda. Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, já chegou a anunciar que o desfecho da crise será a morte do euro. A opinião é corroborada pelo brasileiro Luiz Carlos Bresser Pereira. “O euro está enfrentando uma crise estrutural que não põe em jogo a União Européia, mas põe em risco sua própria existência. Dependendo do desenrolar da crise, alguns países poderão voltar às suas moedas nacionais”.

Reforma tributária às avessas

A orgia neoliberal também causou outras graves distorções. O desmonte do estado beneficiou os ricaços, agraciados com uma reforma tributária às avessas. Hoje, eles pagam menos impostos ou sonegam, aproveitando-se das brechas da libertinagem financeira. Segundo reportagem da revista CartaCapital, “a sonegação de imposto por gregos ricos é estimada em 23 bilhões de euros anuais – quase 10% do PIB... Nas declarações do Fisco, apenas 324 moradores dos subúrbios de Atenas admitiram ter piscina: o Google Earth mostra 16.974”. Os ricaços até camuflam suas fortunas.

No paraíso dos neoliberais, produção e consumo sofreram violenta retração. A produtividade das empresas cresceu muito com os avanços tecnológicos, mas os frutos deste crescimento não foram socializados. O arrocho salarial e o desmonte dos direitos trabalhistas e previdenciários causaram o encolhimento do mercado interno. Antes da crise, o desemprego já atingia 10,3% dos gregos (25,3% entre os jovens). Vários sindicatos foram forçados a aceitar acordos de redução salarial.

Socorro aos banqueiros e industriais

O que já estava doente entrou em coma com a eclosão da crise mundial. Na fase da bonança, os capitalistas embolsaram os lucros. Já na fase da crise, iniciada em agosto de 2007 nos EUA, eles resolveram socializar os prejuízos. O que elevou o déficit público grego é que o “estado mínimo” virou “estado máximo” para socorrer banqueiros e industriais que abusaram da orgia financeira. Três quartos da dívida grega, pública e privada, estão nas mãos de bancos, seguradoras e fundos europeus, principalmente da França (US$ 67 bilhões de dólares) e Alemanha (US$ 36 bilhões).

Diante da eclosão da crise e do risco de contágio na Europa, os cínicos neoliberais impõem agora maiores dosagens da sua receita destrutiva e regressiva. O pacote de “socorro” dos bancos exige o aumento de 21% para 23% no imposto sobre valor agregado, mas não toca nos tributos sobre a riqueza; adiamento das aposentadorias em pelo menos três anos e cortes drásticos do seu valor; liberalização das tarifas de energia e transporte; congelamento do salário dos servidores públicos até 2014; restrição ou eliminação do 13º e 14º salários; e cortes nos adicionais e licenças.

Radicalização da luta de classes

O objetivo do capital é aproveitar a crise, criada por ele, para destruir de vez o que ainda resta do Welfare State na Grécia e em toda a Europa. “O Estado social deve ser reformado”, afirmam, em uníssono, os neoliberais europeus – repetidos à exaustão pelas marionetes nativas da TV Globo e de outros veículos privados. Como alerta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a meta é destruir os direitos, “conquistados a ferro e fogo”, pelas lutas sociais. “Esse estilo de sociedade, de vida e de convivência foi progressivamente sendo deformado pelo avanço do projeto neoliberal”.

Mas esta ofensiva destrutiva e regressiva do capitalismo tende a esbarrar cada vez mais na reação dos trabalhadores. “O tipo de capitalismo que vai surgir [da atual crise] dependerá muito da luta social, da formação do imaginário popular, que, na verdade, não depende muito dos iluminados, mas da capacidade de informação e compreensão do que realmente aconteceu. Isso vai se formar na luta política”, aponta Belluzzo. Também apostando na possibilidade do aumento dos conflitos sociais, o sociólogo estadunidense James Petras prevê intensas e radicalizadas lutas na Europa.

“Há um processo de reversão dos ganhos sociais, um efeito dominó em que as tentativas dos governos para impor o custo da crise na classe trabalhadora causam efeito profundo nos padrões de vida. Não consigo ver como isso não aumentará os conflitos sociais. Na Espanha, há sinais de greve geral. Em Portugal, os sindicatos rejeitaram o plano de Sócrates de cortes nas áreas sociais. Acho que há possibilidade de que, conforme os desdobramentos dos programas como estes, no restante da Europa, as relações de capital de trabalho serão afetadas num futuro não tão distante”.

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Manifesto pela “liberdade de imprensa”

Reproduzo o belo artigo de Idelber Avelar, publicado no sítio Carta Maior:

1. A irrestrita liberdade de imprensa de que se goza hoje no Brasil deve ser defendida por todos os brasileiros, independente de sua posição política. Essa liberdade se caracteriza pela ausência de censura prévia do Poder Executivo sobre o conteúdo daquilo que se diz, escreve ou publica no país. Literalmente qualquer coisa pode ser dita sem impedimento prévio no Brasil, e a mastodôntica coleção de mentiras, injúrias, calúnias, difamações, distorções e manipulações veiculadas regularmente por Veja, Globo, Folha, Estadão, Zero Hora e outros oferece a prova cabal de que vivemos em pleno exercício desta liberdade.

2. Não há democracia em que a ausência de censura prévia sobre o dizer se confunda com a ausência da possibilidade de responsabilização (inclusive penal) posterior ao dito. Muitos brasileiros, ainda escaldados pelas ditaduras, confundem com “censura” qualquer reclamo de responsabilização sobre o dito. Uns poucos brasileiros ligados à grande mídia manipulam de má fé essa confusão em benefício próprio. Na verdade, todas as democracias que asseguram a plena liberdade de expressão (a total ausência de censura prévia) possuem em comum, em seu arcabouço jurídico, alguma forma de penalização sobre o difamar e o caluniar. Essas leis são parte do que garante a plena liberdade de expressão. O problema no Brasil jamais foi a existência delas. O problema no Brasil é que só os poderosos têm podido recorrer à justiça evocando-as, e em geral para silenciar vozes discordantes. As reais vítimas da difamação dos grupos de mídia têm tido acesso quase nulo à reparação juridical.

3. A liberdade de imprensa não está realizada em todo o seu potencial se apenas meia dúzia de famílias dela usufruem de forma massiva. O fato é óbvio, mas, nos debates sobre o assunto, o óbvio com frequência clama por ser reiterado: a liberdade de imprensa estará tanto mais realizada quanto mais numerosos forem os grupos sociais com acesso a veículos que os representem; mais amplo for o leque de discursos acerca de cada tema; mais diversificados forem os pontos de vista em condições de encontrar expressão, entendendo-se que essas condições incluem não só a liberdade de dizer, mas também o acesso aos meios materiais que tornam possível a circulação do dito. Neste sentido, o grande obstáculo para a plena democratização da imprensa no Brasil (que avançou em função das novas tecnologias e algumas políticas do governo Lula) é justamente a mídia monopolista das famiglias, que se agarram aos seus velhos privilégios com enraivado, baboso rancor.

4. Não há liberdade plena de imprensa sem direito de resposta, o direito de expressão mais desrespeitado, historicamente, no Brasil. Tão fundamental é ele para a liberdade de imprensa que não faltariam teóricos do Direito alinhados com a tese de que se trata de direito antropologicamente universal, comparável à legítima defesa. Poucos blogueiros independentes, depois de publicar texto enfocado em outrem, negariam espaço comparável para a resposta do citado. No entanto, vivemos num país cujo maior jornal publica ficha policial falsa, adulterada, com falsa acusação, sobre o passado de uma ministra, e nem mesmo ela consegue exercer seu direito de resposta. Caso ela tivesse cometido o erro político de buscar judicialmente o exercício desse direito, teria sido insuportável a gritaria histérica dos funcionários das famiglias contra uma inexistente “censura”. É preciso que cada vez mais a sociedade civil diga a esses grupos de mídia: vocês não têm autoridade moral para falar em liberdade de imprensa nenhuma, pois apoiaram a instalação dos regimes que mais atentaram contra ela, além de que não a exercem em seu próprio quintal, negando sempre o espaço de resposta a quem atacam. A Folha chegou ao cúmulo de publicar um texto que lançava lama sobre dois de seus próprios jornalistas, qualificando de “delinquência” uma reportagem feita por eles, sem que os profissionais pudessem exercer seu direito de resposta. Pense bem, leitor: essa turminha tem cara de guardiã da liberdade de imprensa?

5. A veiculação de sentença penal condenatória acerca de crime contra a honra cometido pelos grupos de mídia é um direito do público leitor/espectador/ouvinte. Especialmente no caso de sentença já transitada em julgado, é básico o direito do leitor saber que a justiça decidiu que naquele espaço foi cometido um crime contra a imagem de alguém. No entanto, até a data de produção desta coluna (03 de maio), continuam valendo as perguntas: como a Folha de São Paulo tem a cara de pau de não veicular a notícia de que foi condenada em definitivo por crime contra Luis Favre? Como a Zero Hora tem a cara de pau de não avisar ao leitor que se confirmou sua condenação por crime contra uma desembargadora?

6. A discussão democrática sobre a renovação (ou não) das concessões públicas a rádios e TVs não é contraditória com a liberdade de imprensa; pelo contrário, é parte de seu pleno exercício. Há uma razão pela qual a liberdade de que se imprima qualquer coisa é juridicamente distinta da autorização a que se transmita TV ou rádio em sinal emprestado pelo poder público. Só por ignorância ou má fé pode se comparar uma recusa do Estado a renovar uma concessão de TV ao ato de fechar um jornal (recordando que a má fé pode ser ignorante, e com frequência o é nestes casos). No Brasil, a discussão democrática sobre as concessões é de particular importância no caso do único grande império de mídia que sobrevive com inegável capilaridade e poder de fogo, o da famiglia Marinho, de tão nebulosa história.

7. A liberdade de imprensa inclui, como componente essencial e inalienável, a liberdade de exibir, ridicularizar, parodiar e pastichar as gafes, mentiras, barrigas e distorções veiculadas pela própria imprensa. Hoje, no Brasil, nove de cada dez gritinhos histéricos dos patrões e funcionários da grande mídia sobre um suposto cerceamento de sua liberdade de imprensa referem-se única e exclusivamente ao exercício dessa mesma liberdade, só que agora por leitores e ex-leitores, cujo direito à expressão essa mídia jamais defendeu, sequer com um pio.

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